"Quando era miudo... Contei. Nós estavamos sentados na varanda da casa, voltada para oriente. Tomávamos o fresco, o dia fora abrasador. Detrás da serra a lua ia em breve aparecer e nós esperávamo-la quase em silêncio. Só o meu pai me repetia a história dos astros, que eu guardava na memória: Antares, Altair, Deneb, gigantes vermelhas, órbitas no grande vazio dos espaços. A lua veio enfim. Eu sentara-me no chão, mas apetecera-me deitar-me ao comprido para ver melhor as estrelas. E a minha mãe mandou-me ao quarto procurar a manta e a almofada dos nossos sonos no campo. A porta estava aberta, a lua entrava por uma das janelas. Procurei a manta e a almofada numa cadeira, no canto onde a minha mãe as arrumava. Subitamente, porém quando ia a erguer-me, eu vi que estava alguém mais no quarto. Dei um berro. larguei tudo, estatelei-me no corredor. Aos meus gritos acudiu a minha mãe, meu pai, meus irmãos, as criadas, a tia Dulce. E ali, à face de todos, declarei:
- Está um ladrão no meu quarto.
A minha mãe arrebatou o candeeiro a uma criada e fomos todos atrás dela. Mas, iluminando o quarto, examinando os recantos, o ladrão não apareceu.
- Oh, a imaginação desta criança!- exclamou minha mãe.
Sermão sobre a minha imaginação. Meu pai aproveitou a oportunidade para atacar o malefício das historietas que nos contava a velha tia Dulce. Aliás, quem mais as escutava era precisamente eu, não tanto então, durante a minha infância, como mais tarde, quando vinha de férias e desentulhava do sotão, das lojas, dos cantos de arrumações, velhos vestigios de outrora - jornais, fotografias, algumas bem recentes, pois eu já figurava nelas, mas que para mim tinham já a distância ilimitada do passado.
Subitamente, meu pai teve uma ideia:
- Onde é que viste o ladrão?
- Ali.
- põe-te lá onde estavas. olha agora em frente.
Olhei. Quem estava diante de mim era eu próprio, reflectido no grande espelho do guarda-fatos."
Vergilio Ferreira, "Aparição"
Há algum tempo que pretendo escrever sobre este tema, a existência do eu, e acho que nada melhor que esta passagem deste livro maravilhoso para ilustrar bem...
Não sei se alguma vez falaram com espelho. Ao contário, do que é muitas vezes dito, não é sinal de loucura.. Antes pelo contrário. Tive uma professora de Direito que dizia que se conseguissemos olhar para o espelho e falar da matéria, saberiamos se estavamos preparados para o exame, ou para defender o nosso ponto de vista.
Nunca tive a reacção do Alberto (personagem da Aparição), mas muitas vezes procuro o caminho para a existência... às vezes também olho pro espelho e pergunto "quem és tu? e afinal o que queres da vida?"...
Anseio pelo dia em que me conhecendo melhor possa conhecer melhor os outros e perceber as suas atitudes...
A Aparição, é dos meus livros favoritos.. daqueles que está presente na estante e que cada vez que passa por lá o meu olhar é como se recordasse alguma passagem... alguma citação. Além de tentar descobrir o existêncialismos, este livro aborda a temática Vida/Morte, a existência de Deus, quem nos criou... muitas questões que eu ainda não consegui resolver comigo mesma...
Resta-me apenas, e tal como aconselha Alberto, viver um dia de cada vez... afinal de contas, o caminho faz-se caminhando...
Boo
Vai treinando, porque isso leva tempo... se for bem feito, leva anos. Nesse caso já não é um exercício - é uma atitude.
ResponderEliminare chegarei a algum lado? ou o que interessa mais na subida a uma montanha, não é o chegar, mas sim o que se aprende ao subir?...
ResponderEliminarParece que já aprendeste a primeira... depois de aprenderes a segunda, que decorre da primeira, começas a chegar às outras, que aí sim, já são mais concretas.
ResponderEliminarEssa tua professora devia ter cá uma pancada... e se depois o espelho discordasse de ti? Beijo!
ResponderEliminarIsmael, vamos ver como corre esta aprendizagem... a vida é feita disso mesmo.. sempre a aprender... esperemos que com sucesso!
ResponderEliminarbeijinho
Rafeiro, caso a personagem no espelho estivesse "meio engasgada" eu saberia que tinha de ir estudar.... e caso ela discordasse de mim, aí teria de passar para a agressão... e seriam mais 7 anos de azar...beijinho
ResponderEliminarDeixa-nos reflectir... Parece que temos sempre a certeza que ninguém nos conhece melhor do que nós próprios, mas nem sempre é assim...
ResponderEliminarNuca falei com o espelho, mas já chorei (muitas vezes) em frente ao mesmo...
*
olá Formiga, é bom voltar a ver-t por aqui...
ResponderEliminarpois.. às vezes acho que nem nós nem ninguem nos conhece bem... quantas vezes pensamos "nunca vou fazer isto ou aquilo" e quando damos por ela já fizemos...
Eu sou uma choramingas, acho que já chorei em todos os lados.... o espelho pode ser um aliado, desde que não nos tornemos narcisista, né?;)
Por acaso até tenho uma boa relação com o espelho, evito-o e pronto :P
beijinho